A convite do IRIB, autor do livro Manual da Usucapião Extrajudicial ministra curso em São Paulo
O IRIB convidou o seu vice-presidente para o Estado do Paraná, o registrador Francisco José Barbosa Nobre, para apresentar os aspectos práticos e teóricos da usucapião administrativa em curso presencial a ser realizado em São Paulo, no dia 7 de abril, para profissionais das serventias extrajudiciais, e em 28 de abril, para outros interessados.
Francisco Nobre escreveu o livro Manual da usucapião extrajudicial – de acordo com a Lei nº 13.465/2017, incluindo comentários ao Provimento nº 65/2017 do CNJ. A obra traz diretrizes para o procedimento da usucapião no âmbito dos serviços notariais e de registro de imóveis.
Nesta entrevista o autor responde algumas questões feitas pelo presidente Sérgio Jacomino sobre pontos de controvérsia da usucapião extrajudicial.
P – Com a publicação do livro Manual da usucapião extrajudicial o senhor passou a ser referência na matéria – especialmente após o advento da Lei 13.465/2017. Como nasceu o seu interesse pelo tema?
Francisco Nobre – Eu lecionei Direito das Coisas por muitos anos, o que proporcionou uma proximidade com a matéria. Quando assumi a titularidade do Registro de Imóveis, há nove anos, me deparei com uma circunscrição cuja Vara Cível tem um acervo de cerca de mil e quinhentas ações de usucapião em andamento. Com o advento da usucapião extrajudicial surgiu uma via para a solução dos problemas da circunscrição, problemas esses que não são diferentes da maioria dos municípios brasileiros.
P – A "desjudicialização é um caminho sem volta", disse recentemente o juiz-auxiliar do CNJ, Dr. Márcio Evangelista. O deslocamento do processamento da usucapião para o âmbito extrajudicial foi uma opção legislativa acertada?
Francisco Nobre – Quando me formei, em 1985, o bacharel era treinado para litigar em juízo. Não se cogitava de outra função para o advogado. Essa ainda é a visão predominante, mas hoje ela se mostra falida. Os juízes, no Brasil, são muito bem preparados, mas se deparam com um volume de feitos que ultrapassa a capacidade humana. A sociedade, nas últimas décadas, descobriu seus direitos e bateu às portas da Justiça para exigi-los. É preciso buscar outros espaços para a realização dos direitos. O foro extrajudicial é um deles.
P – Como o senhor avalia a tendência de desjudicialização da chamada jurisdição voluntária?
Francisco Nobre – Há uma tendência de associar a desjudicialização à jurisdição voluntária. Pessoalmente, eu discordo dessa visão. Há muitas atividades que não se encaixam no modelo de jurisdição voluntária e que são passíveis de desjudicialização. Veja-se, por exemplo, a execução da alienação fiduciária pelo procedimento de consolidação. Não se pode dizer que seja jurisdição voluntária um procedimento que avança sobre o patrimônio do devedor. E é, sem dúvida, um caso de sucesso da desjudicialização. Uma execução hipotecária podia levar anos até a expropriação ao passo que a consolidação da alienação fiduciária se opera em algumas semanas. O devedor, pode, é claro, judicializar a questão, mas isso só ocorre em pequena porcentagem dos casos. Temos, inclusive, uma proposta apresentada ao IRIB para sugerir ao Congresso Nacional a desjudicialização da execução fiscal, começando pela execução fiscal do IPTU. Uma lei nesse sentido esvaziaria prateleiras nos fóruns do dia para a noite.
P – À parte a doutrina remansosa a respeito do instituto da usucapião, o advento da Lei 13.465/2017, corrigindo notórias imperfeições, acabou precipitando uma série imensa de questões de ordem prática. Como o senhor avalia esse fenômeno?
Francisco Nobre – O foro extrajudicial tem uma grande aliada, que é a regulamentação. Por meio da regulamentação, um órgão correicional pode instituir uma solução interpretativa que talvez não fosse alcançada ou aplicada uniformemente por todos os juízes brasileiros. Veja-se, por exemplo, a dispensa da notificação dos confinantes quando a área matriculada coincidir com a área usucapida. Muitos juízes talvez não se sentissem à vontade para aplicar essa solução porque ela não é diretamente prevista por lei. Mas, instituída essa regra pelo Provimento nº 65/2017 do CNJ, todos os registradores podem e devem aplicá-la, o que traz grande simplificação e uniformidade ao procedimento.
P – A usucapião extrajudicial é uma espécie da ação de usucapião que tem curso no âmbito extrajudicial? Quais são as diferenças?
Francisco Nobre – Pode parecer, a quem tem um primeiro contato com o tema, que o procedimento extrajudicial de reconhecimento de usucapião importaria simplesmente em substituir a figura do juiz pela do registrador. Não é assim. Os conceitos de juiz, ação e sentença têm sede constitucional. A desjudicialização importa precisamente em viabilizar solução fora da estrutura judiciária, e não em criar “juízes” para casos especiais. O registrador não pratica atos judiciários. Não é guarnecido das garantias próprias da magistratura nem de seus deveres específicos. Sua decisão tem natureza de ato administrativo, sendo desprovida das características constitucionalmente asseguradas à coisa julgada. Isso tem vantagens e desvantagens, mas me parece que as vantagens, como a celeridade do procedimento e a uniformidade propiciada pela regulamentação, superam em muito as desvantagens.
P – O processo da usucapião extrajudicial foi confiado aos oficiais de Registro de Imóveis. A titulação se aperfeiçoa no âmbito do registro imobiliário. O senhor avalia que essa opção foi acertada?
Francisco Nobre – A decisão final é do registrador, mas o pedido administrativo só pode ser formulado se o tabelião lavrar uma ata notarial. Eu entendo que com isso a lei quis estabelecer uma dupla qualificação, conferindo maior segurança à usucapião extrajudicial. A usucapião extrajudicial só tem lugar se dois agentes públicos estiverem de acordo a respeito da maioria de seus requisitos, o tabelião e o registrador. Esse sistema sempre me lembra o período formulário, época clássica do Direito Romano, em que uma ação dependia de dois juízes, um que entregava a fórmula aos litigantes e outro que julgava a causa.
P – O IRIB concebeu o mesmo curso com dois enfoques distintos – o primeiro, centrado em aspectos prático-teóricos, voltado especialmente para o profissional do registro imobiliário, seu oficial, substitutos e prepostos. Já o segundo, para o público em geral, buscando atrair outros profissionais do Direito. Comente.
Francisco Nobre – O registrador é o protagonista principal do procedimento. Se o registrador não passa segurança ao tabelião, este não fará a ata. Se o registrador não passa segurança ao advogado, este preferirá a via judicial, com a qual tem mais intimidade. Daí a preocupação de, primeiramente, formar os registradores e, em seguida, dialogar com os demais operadores do Direito. Aliás, o diálogo entre os operadores me parece ser uma das principais vantagens de desjudicialização. Imaginem um advogado indo à vara cível para indagar ao juiz sobre algum aspecto de uma ação de usucapião que pensa em propor. Essa cena é impossível, dadas as características e os deveres da magistratura. Agora imaginem o mesmo advogado conversando com o registrador sobre o ponto que lhe causa dúvida. Não há nenhum impedimento ético.
P – Como tem sido a procura dos interessados pela usucapião extrajudicial? Algumas serventias apontam que a demanda ficou aquém do esperado. A que o senhor atribui isso? Como é sua experiência pessoal no contato com outros oficiais de registro?
Francisco Nobre – A usucapião extrajudicial é uma medida que traz repercussões humanas e sociais tão relevantes que seu impacto demora a ser absorvido pelas várias camadas sociais. Uma mudança tão grande também causa naturais reações do mundo jurídico, que hesita perante aquilo que lhe é desconhecido. São iniciativas como a do IRIB que, progressivamente, fazem com que a novidade se torne mais popular. Não tenho nenhuma dúvida de que, nos próximos anos, teremos a maior revolução patrimonial jamais imaginada no país.
P – Muitos críticos apontam que a usucapião extrajudicial pode se converter numa "porta aberta para fraudes". Nesse aspecto, em que a modalidade extrajudicial difere da judicial?
Francisco Nobre – A fraude sempre pode existir, seja na usucapião judicial ou extrajudicial. Provas falsas também podem iludir o juiz. Mas não devemos esquecer que o registrador e o tabelião têm maior proximidade com o fato. Se, por um lado, é raro que em uma ação de usucapião o juiz faça uma inspeção judicial no imóvel usucapiendo, por outro é raro que um tabelião lavre uma ata notarial sem fazer uma diligência ao local. O registrador, por sua vez, conhece o seu acervo de perto, e terá mais chances em discernir o pedido lícito daquele que é regular.
P – Ainda em relação às críticas, muitos apontam a via extrajudicial como um caminho abreviado para a matriculação de imóveis que se originam de parcelamentos irregulares, desdobros em desacordo com a legislação urbanística, etc. Como o senhor responde a essas críticas?
Francisco Nobre – A usucapião não cria situações irregulares. Do ponto de vista patrimonial ela regulariza situações consolidadas há anos. Até então, sempre se buscava priorizar a regularização urbanística, relegando para segundo plano a regularização patrimonial. Como desfazer um loteamento irregular que já se consolidou pela passagem do tempo? Essa via parece já ter demonstrado sua ineficiência. Com a certeza de que o imóvel é seu, o indivíduo cuida melhor da propriedade. Priorizar a regularização patrimonial significa criar valor para a sociedade, o que acaba tendo repercussões positivas também nos aspectos urbanísticos.