Marcelo de Rezende Campos Marinho Couto[1]
– PARTE 2 –
A TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE COMO UM PROCESSO
Dando continuidade ao estudo proposto, o primeiro ponto é entender o caráter dinâmico da transmissão da propriedade imobiliária.
Em trabalho anterior[2], defendeu-se que a transferência da propriedade imobiliária deve ser vista como um processo, já que depende de uma série de atos para trocar de titularidade. É necessário um ato jurídico inicial, que precisa ser instrumentalizado em observância às exigências legais, e posteriormente inscrito no Registro de Imóveis para mudança da propriedade formal. Em algum momento neste processo poderá haver a entrega do bem, através da tradição da posse.
O negócio jurídico inicial não repercute diretamente no plano do Direito das Coisas. Enquanto não ocorrer o registro, não se consuma o adimplemento da obrigação no plano dos Direitos Reais. Porém, no plano obrigacional o contrato pode ser válido e produzir efeitos entre as partes. Tendo havido a transferência das faculdades dominiais em caráter definitivo e ocorrendo a tradição da posse teremos uma situação jurídica intermediária, no plano do Direito Obrigacional.
Inúmeros são os motivos que levam ao estado intermediário de informalidade, tais como a falta de lavratura do instrumento público, vendas por ‘procuração’, irregularidade no parcelamento do solo urbano ou rural, vícios e irregularidades na escritura, e até mesmo a inércia em apresentar o título no Registro de Imóveis ou em atender simples formalidades documentais feitas pelo Registrador (como apresentar cópia autenticada dos documentos de identificação e certidão de casamento atualizada dos transmitentes).
Em todos estes casos, haverá um proprietário registral (formal), e um possuidor com animus domini, cuja posse está justificada pela relação jurídica celebrada no plano Obrigacional.
O titular registral é apenas formalmente proprietário, pois seu direito real de propriedade foi completamente esvaziado em razão do negócio jurídico celebrado e cumprido (no plano obrigacional) com o adquirente, que possui o bem de forma plena.
Quando a usucapião é utilizada para corrigir uma falha no percurso a ser trilhado, como nos casos de vício ou de falta de instrumento, ela terá como pressuposto fático o direito preexistente, o negócio jurídico celebrado, os termos da negociação.
A usucapião, neste caso, terá como objetivo adequar a titularidade formal à ‘titularidade de fato’, ratificando os atos praticados, sanando nulidades, constituindo título apto a promover a mutação matricular.
Se assim não fosse, se houvesse completa independência no direito adquirido por usucapião, poderia o adquirente pedir a restituição do valor pago pela compra e venda, já que não foi este negócio jurídico que lhe transmitiu a propriedade, mas sim a posse e o tempo? Não poderia pleitear a restituição do imposto de transmissão que eventualmente tenha sido pago?
A resposta é negativa. Explica Lafayette Rodrigues Pereira que “se prescreveu a coisa a título de compra, é obrigado a pagar ao vendedor o preço, não o tendo feito anteriormente; se a título de doação, não se pode subtrair ao cumprimento dos ônus e condições (modalidades) impostas pelo doador.”[3]
Dentro da visão da aquisição da propriedade como um processo complexo, muitos podem ser os fatos e atos jurídicos intermediários praticados, mas todos visam atingir um objetivo: a propriedade plena, consolidada como direito real inscrito no Registro de Imóveis.
A usucapião será, neste caso, o mecanismo jurídico que possibilita o alcance do objetivo, quando obstáculos forem encontrados.
É obvio que não são todas as posses que tem origem em relação jurídica com o titular registral. Existem as que decorrem de invasão ou ocupação, bem como os casos em que o imóvel nunca teve inscrição no Registro de Imóveis.
Entretanto, uma imensa quantidade de situações de informalidade decorrem de vício no processo de transmissão da propriedade.
Consta na ‘Carta de proposta de Medida Provisória’ da MPV 759/2016, que “o Ministério das Cidades recebeu, nos últimos quatro anos, pedidos de recursos para a regularização fundiária de mais de quatro milhões de unidades imobiliárias em todo o Brasil. Muitas dessas ocupações originam-se de contratações legítimas. Ocorre que seus ocupantes, quando muito, possuem, apenas, escrituras sem registro ou mesmo documentos particulares inaptos ao ingresso nos registros imobiliários. São localidades, bairros e, eventualmente, municípios inteiros em condição de informalidade; o que desordena as cidades, com vasto leque de consequências negativas para o bem-estar da população e o desenvolvimento local.”[4]
Conseguir enxergar a transmissão da propriedade como um processo é fundamental para entender a origem do problema. Partindo dessa visão, fica fácil aplicar o instituto da usucapião como um instrumento que visa sanar o vício e atingir o objetivo final: a titulação formal e publicizada no Registro de Imóveis.
[1] Doutorando e Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Coordenador do Departamento de Normas e Enunciados do CORI-MG. Oficial de Registro de Imóveis de Minas Gerais.
[2] COUTO, Marcelo de Rezende Campos Marinho. Usucapião como forma derivada de aquisição da propriedade imobiliária. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, Capítulo 3.1.
[3] PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. atualizado com base no novo código civil por Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell Editores, 2003. t.1, p.223.
[4] Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1553431&filename=Tramitacao-MPV+759/2016>. Acesso em: 16 jul. 2017.