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24/10/2017

Artigo – “Usucapião extrajudicial: reflexões sobre questões controvertidas no Registro de Imóveis” – Parte 7

Marcelo de Rezende Campos Marinho Couto[1]

 

– PARTE 7 –

A ANUÊNCIA DECORRENTE DE ATOS E NEGÓCIOS JURÍDICOS ANTERIORES

 

Uma questão que se propõe, com base no que foi exposto na parte 2 deste estudo, é que os atos jurídicos existentes no campo Obrigacional sejam considerados como anuência do titular registral, quando deles se puder extrair a transferência definitiva do bem a terceiros.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou para consulta pública uma minuta de provimento[2] para regulamentar o procedimento de usucapião extrajudicial em âmbito nacional, tomando por base a redação primitiva do artigo 216-A da LRP.

Nessa proposta, o CNJ reconhece a aplicabilidade da tese aqui proposta, ao dispor:

Art. 6º. Considera-se outorgado o consentimento, dispensando a notificação prevista no caput do art. 5º deste provimento (ou resolução), quando for apresentado pelo requerente, título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica entre o titular registral e o usucapiente, acompanhada de prova de quitação das obrigações e certidão do distribuidor cível demonstrando a inexistência de ação judicial contra o usucapiente ou seus cessionários.

§ 1º. São exemplos de títulos ou instrumentos a que se refere o caput:

a) Compromisso de compra e venda,

b) Cessão de direitos e promessa de cessão;

c) Pré-contrato;

d) Proposta de compra;

e) Reserva de lote ou outro instrumento no qual conste a manifestação de vontade das partes, contendo a indicação da fração ideal, do lote ou unidade, o preço, o modo de pagamento e a promessa de contratar;

f) Procuração pública com poderes de alienação para si ou para outrem, especificando o imóvel;

g) Escritura de cessão de direitos hereditários especificando o imóvel;

h) Documentos judiciais de partilha, arrematação ou adjudicação.

O que se verifica nos casos enumerados é o reconhecimento da usucapião extrajudicial como instrumento de regularização da propriedade formal, haja vista os pactos e atos jurídicos ocorridos fora do plano do Direito das Coisas.

Não se desconhece que a Constituição protege o direito de propriedade e estabelece que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal[3]. Contudo, não se está ferindo o direito de propriedade do titular registral. Na tese aqui defendida, o próprio titular registral emitiu declaração de vontade transferindo o bem, mas não concluiu formalmente o ato. O adquirente recebeu a posse e a exerceu pelo prazo estabelecido em lei, sem que houvesse qualquer ato do titular registral visando a rescisão do contrato, a cobrança de eventual crédito não pago, a retomada da posse, etc. Ou seja, a inércia do titular registral passou a ser sancionada com a perda da propriedade, que ocorre de pleno direito.

Não é o procedimento judicial ou extrajudicial de usucapião que retira a propriedade do titular registral. Essa propriedade já foi perdida, havendo apenas o reconhecimento dessa perda, de forma mais célere e menos custosa para a sociedade, através dos serviços notariais e registrais.

Não obstante a minuta do CNJ não ter se tornado, até o momento, um Provimento, a recepção dos atos nela discriminados como anuência prévia pode ser feita pelo Oficial de Registro de Imóveis, ou pelo Juiz de Direito que analisar eventual procedimento de Dúvida requerida pelo usucapiente.

A anuência do titular registral não precisa obedecer uma forma específica. A própria Lei 13.465, de 2017, modificou a redação primitiva do artigo 216-A da LRP para constar que o silêncio do proprietário usucapido é recebido como anuência com o pedido formulado. Os artigos 111 a 113 do Código Civil trazem regras principiológicas que se irradiam para todo o Direito Privado, em especial quanto à boa-fé objetiva que deve existir não apenas na fase contratual do negócio jurídico, mas também antes da celebração do pacto e após a sua conclusão.

A boa-fé objetiva, como norma de conduta, tem força suficiente para impedir que o titular registral que tenha celebrado negócio jurídico com o usucapiente se negue, sem motivo justo, a lhe transferir a propriedade pelos meios ordinários ou a negar a anuência em pedido de usucapião.

Analisando o negócio jurídico celebrado entre o titular registral e o usucapiente se verifica, na maioria dos casos, que houve o adimplemento da obrigação pelo adquirente (com a quitação do preço), e o parcial cumprimento da obrigação pelo alienante, que somente transferiu a posse mas não se desincumbiu de seu dever no plano do Direito Real[4], por não ter transmitido a propriedade formal.

Como se percebe claramente, nesses casos em que houve uma relação jurídica entre o usucapiente e o titular registral, a aquisição pela usucapião não está ocorrendo ‘contra’ a vontade do proprietário formal, mas sim em cumprimento ao negócio jurídico por ele inadimplido (no que diz respeito à transmissão da propriedade no plano do Direito Real).

Diante da mora do alienante, caberia ao adquirente ajuizar ação de adjudicação, visando o cumprimento específico da obrigação assumida. Nessa ação, o autor/adjudicante deveria demonstrar a ocorrência do negocio jurídico e o adimplemento da sua parte na obrigação (pagamento do preço). O reconhecimento da usucapião, nessa hipótese, evita uma ação judicial desnecessária, facilitando a solução de uma questão na qual inexiste lide.

Exatamente por esse motivo, deve ser colacionado juntamente com o título do negócio jurídico a prova de quitação das obrigações e certidão do distribuidor cível demonstrando a inexistência de ação judicial contra o usucapiente ou seus cessionários.

A questão de eventual fraude ou dúvida no documento deve ser objeto de análise pelo Oficial, que poderá não acatar o documento como anuência, emitindo nota fundamentada, conforme seu livre convencimento, acerca da veracidade e idoneidade do conteúdo e da inexistência de lide relativa ao negócio objeto de regularização pela usucapião.

Por fim, deve-se chamar atenção para um ponto de extrema relevância: a usucapião não serve para substituir as formas ordinárias de transmissão da propriedade imobiliária. Sendo possível realizar a transferência da titularidade do bem pela forma correta, como através de escritura pública ou inventário, o Oficial não deve aceitar o pedido de usucapião.

É, portanto, requisito do requerimento inicial que o usucapiente justifique o óbice à correta escrituração da transação, sob pena de indeferimento do pedido, por falta de interesse de agir.



[1] Doutorando e Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Coordenador do Departamento de Normas e Enunciados do CORI-MG. Oficial de Registro de Imóveis em Minas Gerais.

[3] Conforme artigo 5o, caput, e incisos XXII e LVI da Constituição Federal.

[4] Quem quiser aprofundar essa questão, sugiro que leia o capítulo 3.1 do livro ‘Usucapião como forma derivada de aquisição da propriedade imobiliária’, publicado pela Editora D’Plácido.



Leia as outras partes do artigo:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6