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21/09/2017

Artigo – “Usucapião extrajudicial: reflexões sobre questões controvertidas no Registro de Imóveis” – Parte 5

João Arthur Siqueira da Silva Costa[1]

Marcelo de Rezende Campos Marinho Couto[2]

 

– PARTE 5 –

ANUÊNCIA DO TITULAR REGISTRAL E / OU DOS CONFRONTANTES

 

Após terem sido assentadas as bases teóricas[3], iniciamos a análise do procedimento de usucapião extrajudicial, nos pontos que se mostram controvertidos.

Uma questão que surge decorre da alteração da redação do inciso II e parágrafo segundo, que substituiu a conjunção “e” por “ou” no texto da lei, dando a falsa impressão de que bastaria a anuência do titular registral OU dos confrontantes para que o pedido de reconhecimento da usucapião extrajudicial fosse acolhido.

Parece-nos que a alteração foi para se corrigir o sentido gramatical, mas acabou gerando mais dúvidas.

Pesquisando os diversos motivos das 732 emendas ao PLV n° 12/2017 da então MP n° 759, não se encontrou nenhuma explicação do "porquê" dessa alteração, o que nos leva a crer que a conjunção "ou" foi inserida por algum analista legislativo após uma análise puramente morfossintática das orações do art. 216-A da Lei n° 6.015/73 (Lei de Registros Públicos – LRP).

Vejamos os textos de partes do referido art. 216-A:

“Art. 216-A.  Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:       

II – planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes;”

Como se vê, a alteração visou a contemplar uma coerência gramatical.

Com efeito, a conjunção aditiva "e" está localizada após uma vírgula e antes da expressão "pelos titulares de direitos reais registrados ou averbados", o que conduz à conclusão de que essa conjunção "e" introduziu uma oração coordenada aditiva, já que trouxe uma ideia de "adição ou acrescentamento" com os demais termos.

No entanto, a oração introduzida trouxe impregnadas nela outras expressões que estão com sentido alternativo entre si pela introdução da conjunção "ou".

Contudo, mesmo havendo um sentido alternativo entre essas expressões (matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes), não se pode desconsiderar a ideia de adição introduzida por toda a oração, de modo que essas expressões alternativas estão envolvidas em um sentido único, ou seja, elas são formadoras de um adjunto adverbial de lugar.

Assim, a interpretação que se mostra mais correta é a que exige a obtenção da anuência dos titulares de direitos reais que estejam registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes.

Consubstancia este entendimento a norma contida no §2° do artigo 216-A da LRP, pois as mesmas expressões alternativas também estão sendo usadas em um sentido único de adjunto adverbial de lugar.

“LRP, Art. 216-A: §2o Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância.”

Ademais, faz-se necessário a leitura da norma que regulamenta o procedimento extrajudicial de forma coerente com seus próprios dispositivos e com o Direito.

Assim, o décimo parágrafo do dispositivo, no qual está prevista a possibilidade de impugnação, a conjunção "e" ainda foi mantida:

“LRP, Art. 216-A: §10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.”

Afora a interpretação acima esposada, como é que algum confrontante apresentará impugnação ao cartório se o entendimento for que bastará a anuência do proprietário?

E vice-versa, ou seja, como é que o proprietário apresentará impugnação se o entendimento for que bastará a anuência dos confinantes?

Se o entendimento for "um ou outro" para o inciso II, como é que se entenderá a norma do §10?

Além de tudo, a interpretação da norma tem que ser sistemática ou finalística, sob pena de, neste caso, fazer-se letra morta o preceito do §10.

De igual modo, ao se interpretar esses dispositivos em consonância com os princípios elementares do Direito, não faz sentido reconhecer a usucapião sem que as partes supostamente prejudicadas tenham a possibilidade de se manifestar.

O reconhecimento da usucapião culmina com a extinção formal do direito de propriedade do titular registral. Como se verá nos próximos textos, defende-se que é possível verificar a anuência por outros meios, além da assinatura na planta e da intimação (real ou ficta). Porém, em todas as hipóteses, haverá uma manifestação formal do titular, atual ou pretérita (anuência prévia através de negócios jurídicos anteriores). Quando faltar a anuência, a intimação deve ocorrer para possibilitar a manifestação do interessado.

O que não se pode é permitir que um bem seja usucapido apenas com a anuência dos confrontantes, sem que o titular registral, devidamente identificado na matrícula, não tenha anuído e sequer seja intimado para tomar ciência do pedido formulado[4].

Não se pode perder de vista os preceitos básicos de Justiça, formulados por Ulpiano no Digesto: “Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito. §1. Os preceitos do direitos são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu.”[5]

Logo, não lesar possíveis prejudicados (titular registral ou confinante) e dar a cada um o que é seu (usucapiente) são premissas que devem sempre ser observada na atuação de todos, principalmente dos operadores do Direito.

Desta forma, não obstante a mudança na redação, permaneceu inalterado o sentido da norma, sendo a regra geral a necessidade de anuência ou intimação de todos os titulares de direitos reais existentes não só sobre o imóvel usucapiendo, como também sobre os imóveis confinantes.



 

[1] Oficial de Registro de Imóveis de Passa Quatro, em Minas Gerais.

[2] Doutorando e Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Coordenador do Departamento de Normas e Enunciados do CORI-MG. Oficial de Registro de Imóveis em Minas Gerais.

[4] Alguns documentos poderão servir de anuência, sem necessidade de intimação do titular registral no procedimento extrajudicial. Em outras hipóteses, defende-se que se poderá dispensar a anuência e intimação dos confrontantes. Esses pontos serão tratados nos próximos textos. Mas desde já faz-se a ressalva de que a regra geral é a anuência expressa de todos os titulares de direitos reais tanto no imóvel usucapiente quanto nos confrontantes.

[5] Tradução livre do original: “Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi. §1. – Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere”. ULPIANO. Digesto. Libro I.  Tit. I, 10. Disponível em <http://www.trf1.jus.br/dspace/bitstream/handle/123/52682/Corpus%20iuris%20civilis%20%28disgesto%29.pdf?sequence=1>. Acesso em: 17 set. 2017.



 
Leia as primeiras partes do artigo:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4